Os desafios da patrimonialização na era da reconciliação em Angola
Um itinerário visual pelos espaços divergentes da memória social
Sobre conflito, violência, património
A forma como as sociedades recordam, memorializam e patrimonializam passados de conflito e violência diz-nos muito sobre a forma como constroem a justiça social e a democracia na contemporaneidade. Como recordar o trauma do conflito, da guerra, da catástrofe? Como é que se pode preservar ou conservar algo que evoca memórias de trauma e dor, sentidos de injustiça? Até que ponto é que a patrimonialização de passados violentos não pode gerar novos conflitos? Num ano em que se celebra o Dia Internacional dos Museus dedicado às “catástrofes e conflitos à luz da Carta de Veneza” propomos uma reflexão a partir de lugares e arquiteturas de “patrimonialização difícil” em Angola.
O caso de Angola
Desde a sua independência em Novembro de 1975, Angola conheceu um historial de violência motivado tanto pela longa guerra civil entre o MPLA e a UNITA (1975-2002) como por vários episódios de conflitos políticos internos e ainda vários episódios de confronto entre o Estado e a cidadania. Aqui, destacam-se os casos do 27 de Maio de 1977, os conflitos pós-eleitorais de 1992, a violência policial no Monte Sumi em 2015 ou no Cafunfo em 2021, por exemplo.
Por outro lado, em 2019 o governo angolano promoveu uma iniciativa geral de perdão e reconciliação para as vítimas de violência política, intitulada CIVICOP. Que tipo de memorialização será possível neste contexto? Será que a reconciliação é possível sem verdade e justiça?
A visita virtual
A visita é um itinerário virtual em torno de espaços e lugares reconhecidos como de patrimonialização ”difícil” em Angola, navegando a sua história e problemática.
© Diário de Luanda, 30 de Outubro de 1975
Em Outubro de 1975, um mês antes da independência de Angola, o Diário de Luanda publicava uma reportagem onde se dava conta da celebração do início da luta pela independência através da encenação teatral dos principais eventos ocorridos no 4 de Fevereiro de 1961. Desde então, todos os anos recorda-se o papel fulcral da Casa de Reclusão Militar na história da luta de libertação de Angola. A Casa de Reclusão passou a ser parte da narrativa histórica do país.
Em 2023, a propósito da visita a Luanda do então Primeiro Ministro de Portugal António Costa, fez-se o anúncio público que a Casa de Reclusão viria a acolher o futuro Museu da Luta de Libertação de Angola. Entretanto, as obras de recuperação já se iniciaram. As inscrições que testemunhavam a “vida” dos presos no seu interior foram todas removidas.
Numa altura em que ainda se desconhece o projeto de musealização, torna-se legítimo perguntar: que tipo de memórias é que veremos plasmadas no seu interior? Que tipo de violências será possível expôr?
© Ruy Llera Blanes, 2023
Hospital-Prisão de São Paulo (Luanda)
A então Cadeia de São Paulo foi igualmente um dos lugares-chave no início da luta de libertação de Angola em 1961, tendo sido um dos alvos dos ataques coordenados no dia 4 de Fevereiro de 1961. A informação relativa à sua edificação original é escassa. No entanto, sabe-se que a junção da vertente hospitalar e prisional foi posterior à construção.
© Ruy Llera Blanes, 2023
A Fortaleza de São Miguel é provavelmente o ex-libris da cidade de Luanda, pela forma como se integra na paisagem da Baía. Foi a primeira edificação a ser erguida, ainda no século XVI, durante o governo de Paulo Dias de Novaes. Após servir como fortificação e depósito de degredados ao longo de séculos, no fim do período colonial ainda acolheu o Museu de Angola, que expunha a “história natural” da então colónia portuguesa.
Fortaleza de São Miguel
© Ruy Llera Blanes, 2023
Após a independência, o pátio interior da Fortaleza foi o depositário da estatuária anteriormente exposta nas vias públicas de Luanda, como por exemplo estátuas de Vasco da Gama, Luís de Camões e Paulo Dias de Novaes.
Logo em 1978, a Fortaleza transformou-se em Museu Nacional de História Militar, função que mantém até aos dias de hoje, em particular após as obras de renovação que sofreu em 2013.
No entanto, no intervalo entre a independência e a inauguração do museu, a Fortaleza funcionou como lugar de detenção e execução de presos políticos. Essa história não é contada na exposição permanente que a Fortaleza alberga relativamente à história militar de Angola entre 1961 e 2002.
© Ruy Llera Blanes, 2023
No entanto, a Tundavala também alberga uma história de violência e terror. No âmbito dos conflitos que se verificaram após a independência, tanto no seio do MPLA (o “fraccionismo”) e no âmbito da Guerra Civil com a UNITA, vários presos políticos e militares foram levados à Tundavala e executados, e os seus corpos atirados pela encosta abaixo. Reza a lenda que, dadas as dificuldades de acesso muitos restos mortais ainda se encontram no local.
© Ruy Llera Blanes, 2015
São Nicolau / Bentiaba
Localizado a cerca de 100 quilómetros a norte da cidade de Moçâmedes e rodeado de uma paisagem desértica, o Campo de São Nicolau (hoje Bentiaba) tem as suas origens numa antiga fazenda privada do século XIX vendida à colónia portuguesa para acolher degredados. Mas também existem vestígios da presença de uma rota de escravatura na área usando a zona das Salinas como porto.
Os primeiros presos políticos a serem enviados para a colónia penal chegam em Novembro de 1961.
Ficha Técnica
MOTIVAção
Iniciativa realizada no âmbito do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, 2024: Catástrofes e Conflitos à Luz da Carta de Veneza.
COnceção, Pesquisa, Curadoria e montagem
Ruy Llera Blanes (ISCTE-IUL, CRIA, In2Past)
Projeto em curso
Outros estudos de caso serão acrescentados num futuro próximo. Última atualização a 29 de Abril de 2024.
© 2024