Conflito, violência, trauma e patrimónios difíceis em Moçambique

Um itinerário visual por espaços divergentes da memória social

Apresentação

Sobre conflito, violência, património

A forma como as sociedades recordam, memorializam e patrimonializam passados de conflito e violência diz-nos muito sobre a forma como constroem a justiça social e a democracia na contemporaneidade. Como recordar o trauma do conflito, da guerra, da catástrofe? Como é que se pode preservar ou conservar algo que evoca memórias de trauma e dor, sentidos de injustiça? Até que ponto é que a patrimonialização de passados violentos não pode gerar novos conflitos? Num ano em que se celebra o Dia Internacional dos Museus dedicado às “catástrofes e conflitos à luz da Carta de Veneza” propomos uma reflexão a partir de lugares e arquiteturas de “patrimonialização difícil” em Moçambique.

O caso de Moçambique

Após uma história colonial de violência marcada pela dominação militar, pela exploração do seu povo e das suas paisagens, Moçambique conheceu finalmente a independência em 1975. Infelizmente, isto não significou o fim da guerra e do conflito. Após uma guerra civil de 16 anos entre a Frelimo e a Renamo, Moçambique foi conhecendo outras histórias de conflito, desde os desastres humanitários ligados a eventos climáticos à insurgência em Cabo Delgado e à violência da expropriação relacionada com a indústria extrativa. Que tipo de memória é possível num contexto de sobreposição de conflitos e desastres?

A visita virtual

A visita é um itinerário virtual em torno de espaços e lugares reconhecidos como de patrimonialização ”difícil” em Moçambique, navegando a sua história e problemática.

© Ruy Llera Blanes, 2024

Vila Algarve

A Vila Algarve é um edifício situado em plena zona nobre Polana de Maputo destacando se tanto pela sua estética modernista como pelo seu precário estado de conservação atual estando atualmente o seu acesso vedado É conhecida sobretudo por ter sido a sede da PIDE no tempo colonial testemunhando a prisão e tortura de vários nacionalistas moçambicanos

Construída em 1934, a Vila Algarve foi erguida pelo comerciante e editor fotográfico da então Lourenço Marques, José Santos Rufino. Na década de 1940 foi vendida ao Estado português, que decidiu fazer da Vila a sede da então recém-criada PIDE. Em 1950 sofreu obras de ampliação, sendo-lhe adicionado um segundo piso. Serviu então como lugar de detenção, interrogatório e tortura.

Por este edifício passaram muitos nacionalistas moçambicanos, na maioria membros da Frelimo. Entre os detidos mais famosos contam-se o pintor Malangatana (1936-2011) e o poeta José Craveirinha (1922-2003).




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© Houses of Maputo (link)

Vila Algarve em 1961 Foto de Harrison Forman

© Houses of Maputo (link)

Detalhes das fachadas e dos painel de azulejos da Vila Algarve

Snow Covered Trees

Após a independência de Moçambique, a Vila Algarve entrou num processo de degradação que continuou até aos dias de hoje. Durante muito tempo foi ocupado por pessoas sem abrigo e toxicodependentes, até ver o seu acesso vedado por muros de tijolo e cimento.

Isto não significa que não tenha sido objeto de planos diversos de recuperação. Em 2008, a Ordem dos Advogados moçambicana anunciou planos para o restauro e transformação do edifício na sua própria sede. Em 2011, é anunciado que a Vila Algarve acolherá o futuro Museu da Luta de Libertação. Entretanto, o edifício está catalogado para classificação de Património Nacional pela Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico da Universidade Eduardo Mondlane. No entanto, nenhum dos projetos passou do papel.

Entretanto, o edifício continua a alimentar rumores sobre o porquê do seu abandono, e a inspirar artistas nos seus trabalhos.

© Amilton Neves Cuna (link)

Aspetos do interior da Vila.

Fotografias de Amilton Neves Cuna, 2019.

© Ruy Llera Blanes, 2021

“Não lugares” da memória em Cabo Delgado

Que memória é possível manter em contextos de guerra e deslocação Desde 2017 a província de Cabo Delgado tem vindo a ser assolada por um movimento de insurgência islâmica que motivou a fuga desesperada de milhares de pessoas das zonas de guerra Vários campos de deslocados mais ou menos provisórios foram aparecendo nas zonas mais seguras em particular em torno da cidade de Pemba
Do ponto de vista histórico o norte de Moçambique incorpora uma longa história de migração e deslocação forçada desde os tempos da Companhia do Niassa 1890 1929 até à luta de libertação e guerra civil entre a Renamo e a Frelimo Desde este ponto de vista a insurgência islâmica os ciclones e as cheias e o reassentamento no âmbito das atividades extrativas são apenas os últimos episódios de um longo movimento

© AHU

Após os primeiros ataques do Estado Islâmico ou Al-Shabab em 2017, o governo moçambicano respondeu através da criação de uma força conjunta internacional

Estima-se que desde o início da guerra se tenham acumulado quase 1.3 milhões de deslocados nas províncias de Cabo Delgado e Nampula. Aldeias como esta na zona de Metuge passaram a fazer parte da paisagem local.

© Ruy Llera Blanes, 2021

Praia de Paquitequete Pemba Em 2021 após os ataques à cidade de Palma milhares de deslocados fugiram ade barco chegando à Baía de Pemba Ao longo dos meses que se seguiram a cidade de Pemba mais do que duplicou a sua população gerando se novas e complexas dinâmicas sociais

© Ruy Llera Blanes, 2022

Que memória é possível manter em contextos de guerra e deslocação Enquanto ficam alojados em campos de refugiados provisórios e são impedidos de regressar os deslocados carregam consigo a dor da perda a dificuldade de sobreviver no presente e a incerteza do futuro Para muitos sobretudo os mais novos os lugares de origem passam a ser memórias distantes Para os que vão involuntariamente perpetuando a estadia provisional nos campos a recordação é um ato de tristeza Como patrimonializar algo que se perdeu

© Ruy Llera Blanes, 2021

Cadeia da

Machava

(Maputo)

O complexo penitenciário da Machava foi construído no início da década de 1950 pelas autoridades coloniais portuguesas com o propósito inicial de albergar presos de delito comum Com o advento da luta de libertação na década de 1060 a PIDE criou uma secção específica dedicada a presos políticos Em 1973 de acordo com uma denúncia da Cruz Vermelha encontravam se presos na Machava 1049 presos políticos por suspeita de ligação à Frelimo

Excerto de reportagem exibida na RTP 1 em Abril de 1973, sob o título “Cadeia da D.G.S. em Lourenço Marques, que nos oferece uma visão geral da Cadeia da Machava e da vida dos presos nos seus pátios.

© RTP Arquivos, 1973

Cela 4 expectativa 1967 de Malangatana um dos presos políticos que passou pela Cadeia da Machava

© Culturgest

© Mozambique History

Após a independência a Frelimo e Samora Machel promoveram vários encontros com ex presos políticos na Machava e outros locais Desconfiava se da sinceridade e infiltração de alguns dos ex presos Vários foram parar de novo às prisões coloniais e campos de reeducação para serem reeducados Nesta fotografia uma dessas reuniões

A Cadeia da Machava continua a funcionar até hoje, já com a designação de Cadeia Central de Maputo. Não foi até hoje objeto de qualquer abordagem memorial ou patrimonializante, desconhecendo-se os vestígios materiais da época colonial e pós-independência no seu interior.

© Flickr

Cemitério Memorial de Pemba

Na cidade de Pemba em Cabo Delgado, anexo ao cemitério civil, existe um memorial às vítimas da I Guerra Mundial muito pouco conhecido do grande público. Representa um episódio da história global - a “Campanha da África Oriental” - que envolveu as costas do norte de Moçambique nos combates entre as forças alemãs e as aliadas.

© Ruy Llera Blanes, 2024

A comunidade de falecidos aqui homenageados inclui antigos combatentes de várias nacionalidades oriundos da Europa da África e da Ásia São no total 121 vítimas aqui enterradas A construção e manutenção do memorial foi da responsabilidade da Commonwealth War Graves Commission

© Ruy Llera Blanes, 2024

© Ruy Llera Blanes, 2024

Ficha Técnica

MOTIVAção

Iniciativa realizada no âmbito do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, 2024: Catástrofes e Conflitos à Luz da Carta de Veneza.

COnceção, Pesquisa, Curadoria e montagem

Ruy Llera Blanes (ISCTE-IUL, CRIA, In2Past)

Projeto em curso

Outros estudos de caso serão acrescentados num futuro próximo. Última atualização a 30 de Abril de 2024.

© 2024